Direito da concorrência e mercosul
E. M.
Octaviano Martins[1]
Abordar o direito da
concorrência no âmbito do processo integracionista adentrado pelo Mercosul,
requer análise da contraposição entre realidade e perspectiva.
Realidade no sentido de indagarmos em que ponto de um processo verdadeiramente
integracionista o Mercosul se posiciona e a perspectiva de qual a integração
almejada... E dentro de tais parâmetros, em que vértice se enquadra o direito da
concorrência.
Ao adentrarmos tal enfoque, ousamos tecer algumas respostas, sem qualquer
pretensão de esgotarmos o tema.
No que concerne à realidade, atualmente o Mercosul se encontra na segunda fase
de um processo de integração econômica, retratada numa união aduaneira, embora
imperfeita.
A perspectiva: tornar-se um mercado comum, encarando o desafio de transformar-se
no segundo mercado comum do mundo. E nesse contexto, o direito da concorrência
elenca-se como um dos preceitos integracionistas fundamentais para a consagração
dessa nova etapa.
Nos estados organizados, existem cinco preceitos caracterizadores da integração
econômica, que configuram a estrutura do mercado comum. Tais preceitos,
formulados pelos constitucionalistas norte-americanos com base na cláusula
constitucional free comerce clause, são denominados doutrinariamente de
cinco liberdades que se traduzem pela livre circulação de bens, pessoas e
capital; livre prestação de serviço e livre estabelecimento e a liberdade de
concorrência, objeto central de nosso enfoque.
Em termos genéricos, a concorrência é definida como o mecanismo básico da
economia de mercado, que assegura que os preços reflitam a relação real entre a
oferta e a procura, permitindo à economia, redistribuição de recursos de forma
mais eficaz. A concorrência expressa na sua íntegra maior escolha para os
consumidores aliada a preços mais baixos. Visualiza-se portanto, que a
concorrência é o centro vital do sistema econômico.
Na realidade concorrencial, para as empresas a concorrência e a busca pelo menor
preço não configuram prioridades naturais. Ao contrário, em regra a preocupação
se centra em maximização de lucros; e dessa forma, não raro surgem as
tentativas de formação de cartéis, monopólios ou oligopólios, dentre outros
atos anticoncorrenciais.
Não se vislumbra tal realidade somente por parte das empresas. Os governos, por
sua vez, sob a égide da proteção social também atuam contrariamente à
concorrência. Quando as barreiras físicas começam a ser depostas, fruto do
processo de integração, não mais são permitidos entraves aos produtos
importados; e nesse palco, surge o protecionismo disfarçado, que se apresenta
sob a forma de subsídios a empresas nacionais e monopólios de prestação de
serviços concedidos a empresas públicas, dentre outras atitudes.
Embora não defendamos que o Mercosul venha a tornar-se uma cópia fiel do Mercado
Comum Europeu, pois as realidades são eminentemente diversas, sustentamos ser
importante a busca da experiência; absorvendo-se e aprimorando-se o que se
enquadra em nossas necessidades e aspirações.
Na Comunidade Européia - como era de se esperar de uma integração verdadeira - o
direito da concorrência ultrapassou as fronteiras nacionais instalando-se no
âmbito comunitário. Estabeleceu-se um quadro jurídico único aplicável a toda a
comunidade, impedindo que empresas e governos adotem comportamentos lesivos à
concorrência.
O Tratado de Roma, nos artigos 85 e 86, acertadamente tutela juridicamente a
liberdade de concorrência e os direitos antitruste no âmbito do direito
comunitário, centrando-se em algumas áreas bem definidas como os cartéis, abusos
de posição dominante, fusões e aquisições de empresas e o papel dos governos.
Tais normas, tem sua aplicabilidade efetivada pelo Tribunal de Justiça,
assegurando uniformidade de aplicação e implementação do direito concorrencial.
A Comissão da Comunidade Européia é a instituição encarregada de investigar as
acusações e violações das normas comunitárias, tendo poderes para ordenar a
cessação das práticas ilegais e imposição de multas às empresas transgressoras;
bem como para controlar e vetar, se necessário, as grandes operações de fusão e
aquisição de empresas.
A necessidade de proteção ao consumidor de práticas lesivas à concorrência,
coloca a política concorrencial no ápice da solidificação desse ousado projeto
de integração denominado Mercosul , pois as nações mais prósperas e produtivas
do mundo centraram seus mercados na liberdade de concorrência.
No Mercosul, será necessário rever todas as legislações existentes nos Estados
Partes; uniformizando-as e editando-as nos países em que inexistam, sendo
inadmissível que num mercado comum que as leis regulem de modo diverso o que é
ou não ato lesivo à concorrência ou abuso de poder econômico. Sem sombra
de dúvida, a adoção de regras únicas conduz a uma maior segurança jurídica e
uniformidade de decisões, não só no campo do direito da concorrência, mas em
todo o ordenamento jurídico como pressuposto de sucesso da integração almejada.
Adentrando a temática da harmonização de legislações, no que concerne à prática
anticoncorrencial enquadrável como dumping, praticado por terceiros
países, não se vislumbra qualquer problemática, tendo em vista que os países
integrantes do Mercosul são também signatários do G.A.T.T., incorporando-se
dessa forma, o Código Antidumping em suas legislações.
No campo interno do direito antitruste, embora não se vislumbre dificuldades
de cerne conceitual para a harmonização das legislações, tendo em vista que as
normas existentes centram-se basicamente nos mesmos objetivos, há que se
ressaltar alguns aspectos no que tange à legislação brasileira e à legislação
argentina, tendo em vista o Uruguai e Paraguai não possuem normatização à
respeito.
Na Argentina, a Lei 22.262/80, denominada Ley de Defensa de la Competencia
, centra sua preocupação no domínio de mercado, na posição dominante e com o
conluio de empresas - acciones acertadas - que provoca condições de
monopólio ou oligopólio cartelizado, diferentemente da legislação brasileira que
enquadra ações individuais também. Verifica-se portanto que a legislação
argentina carece de preocupação mais direcionada à prática desleal desvinculada
do fenômeno de acciones acertadas, embora a jurisprudência argentina já
adote tal aplicabilidade.
Por outro lado, a recente legislação brasileira 8.884/94, não configura um
ideal legislativo, sendo bastante criticada doutrinariamente tendo em vista sua
terminologia ambígua e imprecisa em alguns pontos, delegando assim um grau
enorme de subjetividade ao julgador; além de apontarem-se aspectos
inconstitucionais.
No que tange às práticas desleais de concorrência praticada entre países
integrantes do Mercosul, o Tratado de Assunção, diferentemente do Tratado de
Roma, nada prevê em sua essência, sendo necessária a formulação do Protocolo de
Defesa da Concorrência, assinado em 17.12.96. Tal Protocolo - que se encontra em
fase de ratificação pelos Estados Partes e sem qualquer previsão para entrada em
vigor - estabelece diretrizes defensoras da concorrência no âmbito do Mercosul
que orientarão os Estados Partes e as empresas neles sediadas, visando assegurar
a livre concorrência no processo de integração econômica.
Analisando-se superficialmente o recente Protocolo, são enquadráveis como
infrações, independentemente de culpa, os atos, individuais ou concertados
manifestados sob qualquer forma , que objetive ou tenha o efeito de limitar,
restringir, falsear ou distorcer a concorrência ou o acesso ao mercado ou que
constituam abuso de posição dominante no mercado relevante de bens ou serviços
no âmbito do Mercosul, afetando o comércio entre os Estados Partes (art. 4o. do
Protocolo de Defesa da Concorrência do Mercosul ).
As sanções serão aplicadas pelo órgão nacional de aplicação do Estado Parte em
cujo território estiver domiciliada a parte infratora (art. 28 parágrafo
segundo) e poderão ser aplicadas cumuladas ou alternativamente, nos termos do
art. 28 :
I - multa, baseada nos lucros obtidos com a prática infrativa, no faturamento bruto ou nos ativos envolvidos, a qual reverterá a favor do órgão nacional de aplicação do Estado Parte em cujo território estiver domiciliada a parte infratora;
II - proibição de participar de regimes de compras públicas em quaisquer dos Estados Partes, pelo prazo que determinar;
III - proibição de contratar
com instituições financeiras públicas de quaisquer dos Estados Partes, pelo
prazo que determinar.
Para a gradação das sanções estabelecidas no Protocolo, considerar-se-ão a
gravidade dos fatos e o nível dos danos causados à concorrência no âmbito do
Mercosul (art.29).
Sem adentrarmos em grandes
críticas ao Protocolo, que também não consideramos uma perfeição legislativa -
merecendo abordagem profunda que será apresentada em novo estudo - cumpre-nos
ressaltar que, na Comunidade Européia, as normas jurídicas comunitárias são
respeitadas e cumpridas, principalmente no que concerne ao direito de
concorrência, esperando que no Mercosul, adotemos o mesmo posicionamento. Porém,
na nossa realidade, na atual estrutura governamental, diferentemente da
supranacionalidade adotada pelo Mercado Comum Europeu, provavelmente os casos de
descumprimento do Protocolo não serão tratados com a mesma celeridade e proteção
coesa vigentes na União Européia. Infelizmente, aqui, a política ainda se
encontra em patamar mais alto que o direito, e conseqüentemente as soluções e a
aplicabilidade das normas serão com certeza mais demoradas.
Têm-se a nítida consciência que a colaboração internacional em matéria de
combate às práticas comerciais desleais é de difícil implementação, pois em
matéria antistruste, a política governamental de um país tenciona defender o
que geralmente a política de outro país procura atacar. Sem aderirmos porém a
tal pessimismo, a implantação em si de um sistema uniforme de proteção à
concorrência no âmbito da integração, é por natureza lento e complexo em sua
essência.
Nesse sentido, imprescindível será o abandono da estrutura intergovernamental, adotando-se a criação de um tribunal supranacional, que decida questões de direito da concorrência no âmbito do Mercosul, assegurando uniformidade de interpretação e aplicação. É necessário abandonar o conceito ultrapassado de soberania, estabelecendo-se a primazia do direito comunitário sobre o direito nacional. A aceitação de uma ordem jurídica supranacional é pressuposto de sucesso para o processo integracionista pleiteado pelo Mercosul.
Finalizando, dentro dessa realidade e perspectiva que ora analisamos, se realmente o objetivo do Mercosul é o mercado comum, não poderá neglicenciar nos seguintes pontos vitais : a adoção urgente da supranacionalidade, conjuntamente com a relevância do papel fundamental do direito da concorrência e os abusos do poder econômico.
Ainda é muito cedo para se tecer avaliações definitivas quanto ao sucesso do Mercosul. Só o futuro revelará se o Mercosul será uma verdadeira comunidade ou não passará de uma união aduaneira.
O processo de integração é por demasia complexo, requerendo mudanças profundas de conceitos e posicionamentos, no qual a humildade e a persistência assumem preponderância. Já não há mais espaço para conflitos de interesses e guerras políticas, visando hegemonia de qualquer espécie. Diferenças à parte, é hora de nos unirmos em busca da vitória.
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[1] Eliane Maria Octaviano Martins é sócia de OCTAVIANO MARTINS ADVOGADOS ASSOCIADOS (www.octavianomartinsadvogados.com.br) Vice-Presidente do Instituto Paulista de Direito Comercial e da Integração - IPDCI, Coordenadora Jurídica da Revista de Direito Internacional e Mercosul (Ed. La Ley, Buenos Aires); Professora Titular de Direito Comercial e de Direito Marítimo da UNISANTA e UNIMONTE em cursos de graduação e pós-graduação;; Web master do Portal Santa jus (www.santajus.unisanta.br), autora de diversos livros e artigos no Brasil e Exterior. Pósgraduação em Direito Privado; Mestrado em Direito Empresarial (UNESP) e Doutoranda em Direito Econômico Internacional (USP).